23/02/2016
Que as agências reguladoras só
conseguem receber muito pouco das multas que aplicam às empresas que devem
fiscalizar – e também que elas e os legisladores nada fazem para mudar essa
situação – é fato conhecido. Agora, a Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS), que cuida de um setor sensível, acaba de piorar ainda mais as coisas, ao
traçar regras para a aplicação de multas às empresas de planos de saúde, que
reduzem seus montantes e dificultam de tal forma sua cobrança a ponto de na
prática torná-las quase irrelevantes.
A quantidade e as
características das vantagens oferecidas àquelas empresas, em resolução baixada
pela ANS, deixam a nítida e penosa impressão de que a agência, contrariando sua
vocação, colocou em segundo plano os interesses dos clientes dos planos de
saúde. A empresa punida poderá ter desconto de 40% da multa que lhe foi
aplicada, mesmo que não cumpra a obrigação de prestar atendimento ao cliente,
como mostra reportagem do Estado. Como se tudo isso não bastasse, ela ainda terá
até 30 dias para fazer o pagamento do valor reduzido.
E tem muito mais. Em outros
casos, vencido o prazo de 5 a 10 dias estabelecido pela agência para que a
empresa faltosa repare o dano causado, o que acontece? É ela punida
imediatamente? Que nada. Se em até 10 dias úteis depois de encerrado o prazo a
empresa se dispuser a reparar o dano, terá abatimento de 80% da multa. Ou seja,
quanto mais desobedecer às regras, mais benefícios terá, numa inversão total do
que seria natural e lógico.
Quanto ao pobre do cliente que
se sentir lesado, ele que se prepare para uma longa, cansativa e enervante
maratona para tentar fazer valer seus direitos. O primeiro passo é recorrer aos
canais de atendimento da ANS, o que leva a uma Notificação de Intermediação
Preliminar (NIP) à empresa para que resolva o problema no prazo de 5 a 10 dias.
Se isso não acontecer, em vez de tomar medidas para forçar a empresa a fazer o
que deve, a agência dá mais 10 dias para o cliente reforçar a reclamação.
Dessa maneira, invertem-se os
papéis e o punido é ele. Como diz a professora. Lígia Bahia, do Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “É uma
forma de penalizar o usuário (dos planos de saúde): ele tem de ligar várias
vezes, ser insistente”. Com a agravante de que esses sistemas de atendimento,
como é notório, submetem as pessoas que a eles recorrem a longas esperas.
Lígia Bahia lembra o óbvio que
parece ter escapado à ANS, ou ao qual ela fechou os olhos por razões que
precisa esclarecer: “Multas têm a função de coibir abusos, de prevenir o
desrespeito às regras” e, por isso, ao estabelecer uma política de descontos, a
mensagem que a ANS transmite é justamente o oposto – desrespeitar vale a pena.
Na mesma linha vai o professor Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP,
outro conceituado estudioso do problema: “É um presente para quem descumprir as
regras, convite para a negativa de atendimento e para empurrar ao máximo o
cumprimento de uma obrigação”.
A ANS ainda tem o desplante de
afirmar, por meio de nota, que essas novas regras tornarão a fiscalização mais
racional, rápida e eficiente. Mas reconhece não ser possível determinar quão
rápido elas tornarão o processo, embora esse dado devesse constar dos estudos
que serviram de base para a resolução.
A desagradável verdade é que a
ANS parece estar apenas consagrando em normas oficiais a incapacidade – ou
falta de vontade – de punir empresas que prejudicam os usuários que pagam caro
por seus planos de saúde. Levantamento feito pelo Estado em 2013, com base em
dados oficiais, mostra que em 2011 e 2012 a ANS não recolheu nem 2,5% das
multas aplicadas no período.
Os governos do PT trataram com
desleixo o sistema público de saúde e incentivaram a expansão dos planos de
saúde, que hoje atendem 54 milhões de pessoas. O mínimo que seria de esperar
agora do poder público é que defendesse seus direitos. Preferiu defender o das
empresas.
Fonte: O Estado de S.Paulo